Mealheiro #59: Violência financeira
O que o dinheiro faz por nós não compensa o que fazemos por ele - Gustave Flaubert
Hoje trago-te um tópico que não é discutido com muita frequência, mas que penso ser importante abordar. Não sou nenhum especialista, nem de longe nem de perto, e por isso o artigo de hoje é escrito em parceria com a Eva Francisco Pinheiro. Psicóloga, co-fundadora do Happy Place, consultórios de psicoterapia no Porto e escreve sobre os mais variados temas relacionados com psicologia, em conjunto com outra colega, no seu Instagram.
O que é a violência financeira?
Segundo a APAV, a violência doméstica divide-se em 6 categorias:
violência emocional: qualquer comportamento do(a) companheiro(a) que visa fazer o outro sentir medo ou inútil;
violência social: qualquer comportamento que intenta controlar a vida social do(a) companheiro(a);
violência física: qualquer forma de violência física que um agressor(a) inflige ao companheiro(a);
violência sexual: qualquer comportamento em que o(a) companheiro(a) força o outro a protagonizar actos sexuais que não deseja;
violência financeira: qualquer comportamento que intente controlar o dinheiro do(a) companheiro(a) sem que este o deseje (nota: embora esta seja a forma de abuso financeiro mais comum, este também pode partir de outras relações - por exemplo familiares, amigos e cuidadores);
perseguição: qualquer comportamento que visa intimidar ou atemorizar o outro.
A violência financeira, uma sub categoria da violência doméstica, é uma realidade bem mais frequente do que possamos imaginar. Muitas vezes, este tipo de abuso não chega a ser denunciado porque a vítima não se apercebe de que está a ser enganada, ou não sabe onde se dirigir para denunciar a situação ou simplesmente porque não existem terceiros à volta que tenham conhecimento do caso e que possam apresentar queixa.
A relação abusador/vítima
Não obstante, a definição e tipos de violência doméstica e usando os mais recentes exemplos de casos de abuso financeiro, designadamente o documentário da Netflix ‘Tinder Swindler’ e a série ficcional ‘Inventing Anna’, o comentário mais comum do espectador é “Que ingénuas! Havia de ser comigo…”; “Como é que é possível as pessoas caírem nestas histórias?!”. Urge, antes de mais, mudarmos a tónica do nosso questionamento do comportamento da vítima para o comportamento do abusador, tais como: “o que leva uma pessoa a comportar-se assim?”, “porque é que não pára?”.
Por muito difícil que possa ser relacionarmos e identificarmos com as vítimas de abuso financeiro, a crença de que jamais nos aconteceria é falaciosa e na verdade deixa-nos mais vulneráveis a este tipo de abuso. Note-se que o abusador, tal como acontece nos outros formatos de violência, não se manifesta logo (ler publicação sobre relacionamento abusivo).
Na verdade, estes possuem um perfil cujo o primeiro passo é construir uma base de confiança. No caso específico do abuso financeiro, apresentam-se como indivíduos com poder financeiro e que parecem dominar o jargão financeiro e com um perfil comunicativo bastante apelativo, o que para a maioria da população - que não possui literacia financeira - se edifica como uma pessoa confiável, com maior nível de conhecimento e a quem se poderá recorrer em caso de dúvidas.
A partir daí, o abusador começa a exercer o seu domínio através do controlo. Começa com pequenos comentários em forma de ‘preocupação’, depois críticas mais assertivas em que questiona pequenos gastos até finalmente se começar a oferecer para ajudar na gestão das finanças, suportando-se do ‘superior conhecimento’. Basicamente estabelece-se a premissa de haver um que entende e outro que entende menos, pelo que o que entende menos usufrui do conhecimento do ‘entendido’.
E é efectivamente aqui que qualquer um se pode tornar vulnerável e acontece em muitos outros contextos, não só no financeiro: quando delegamos a busca do nosso conhecimento sobre um tema do nosso interesse, em pessoas pouco credenciadas, mas que se apresentam como o sendo.
A partir do momento que o abusador se estabelece como co-gestor financeiro pode exercer o domínio e é então que começa a exercer violência através dos gastos, em que começa a decidir quais os gastos que devem ser tidos e a pedir explicações por qualquer gasto que é tido sem o seu consentimento, que em muitas situações chegam a ser ao cêntimo. Começa a passar coisas para o seu nome e é quando se começam a revelar características de comportamento intempestivo e muitas vezes a ser abusivos verbalmente e não só, quando a vítima se recusa a fazê-lo. Começa também a tomar decisões financeiras, neste caso débeis, sendo que a última fase inclui as emergências que coagem a pagar, convencendo a fazer empréstimos se necessário até conseguirem efectivamente pedir créditos e empréstimos em nome da vítima, deixando as contas para esta pagar, de modo a manter um estilo de vida e controlo sobre a vítima.
Resumindo, a violência financeira inicia-se sempre pela confiança, controlo e culmina em endividamento e até extorsão. Este último não tem que acontecer em todos os casos. Na maioria das situações, os abusadores atingem o controlo e persistem nesta fase com o intuito de que a vítima dependa dele, como forma de perpetuar uma relação co-dependente. E para que haja uma relação co-dependente tem que existir sempre alguém com um perfil dominador/controlador e outro alguém com um perfil dependente/submisso. E o dependente submete-se ao domínio do controlador, com base em inseguranças pré-estabelecidas, como por exemplo a crença de que “não percebo nada de finanças”.
O controlo pode inclusivamente verificar-se nas decisões de carreira da vítima, minimizando a importância da sua actividade profissional ou desencorajando novas oportunidades de carreira. Nas situações em que atinge o endividamento e sobretudo a extorsão, estamos perante quadro de perturbações da personalidade, de ordem vária. Como qualquer perturbação da personalidade, o indivíduo é pouco consciente da sua patologia justificando-o como sendo a sua ‘maneira de ser’, o que conduz, não raras vezes à desculpabilização do dependente do comportamento do abusador. Esta forma de abuso tanto pode acontecer isoladamente como em simultâneo com outras formas de abuso. Depende de cada contexto e dinâmica relacional.
De salientar, que esta forma de violência não é exclusiva de uma dinâmica de casal, grande percentagem do abuso financeiro é facilmente identificável na terceira idade, em que o(a) idoso(a) perde a sua independência e vê todos os seus gastos controlados por um ou mais filhos, apesar de não apresentar nenhum comprometimento cognitivo.
Uma outra forma, bastante recorrente de abuso financeiro, é o exercido de pais sobre filhos, em que o progenitor contrai a dívida em nome dos filhos, limitando o acesso a oportunidades profissionais e pessoais. Ou também a recusa em pagar a pensão de alimentos aos filhos.
A melhor forma de prevenção é estarem atentos aos sinais de alerta e confiarem nos vossos instintos e verificarem os padrões de condescendência que apresentam perante o comportamento do outro. Após estarem envolvidos numa situação assim, a única forma de resolução é planearem a vossa retirada da relação co-dependente, estabelecendo limites, até se necessário cortarem o contacto com o abusador. Caso não seja possível limitem-se a um contacto mínimo, de preferência por vias formais.
O que é que se pode fazer?
Vamos então tentar concretizar um pouco mais o que foi dito acima, no último parágrafo. Todas as recomendações abaixo aplicam-se tanto a vítimas, como à rede de suporte das vítimas:
Pedir ajuda a familiares e amigos de confiança;
Contactar instituições e grupos de apoio especializado (p. ex. APAV), ou então procurar aconselhamento jurídico por conta própria - embora seja em inglês, o Money Helper tem também bastantes recursos interessantes;
Reportar às autoridades competentes, visto que violência financeira é violência doméstica e, como tal, um crime público;
Garantir que a vítima tem acesso às suas contas bancárias pessoais, caso seja o caso. Para além disso, é aconselhável criar uma nova conta bancária em seu nome, que dê acesso à banca, e a cartões de crédito e débito. Isto deverá ser feito sem que o agressor tenha conhecimento. Devem usar esta conta para colocar dinheiro de parte (bónus, salários, trocos, e outros), longe das mãos do abusador;
Olhar para o reverso da medalha. É possível que o abusador tenha escondido de si património ou dívidas, e que também podem pertencer à vítima - para o bem e para o mal. Fazer algum trabalho de investigação para perceber se é o caso pode ser relevante.
Para terminar, gostava de fechar com um texto que se encontra no portal da APAV:
Ser vítima de crime pode ser uma experiência difícil e traumática.
Cada um de nós pode ser, num dado momento da vida, vítima de um crime. O impacto do crime na vida da vítima pode ser tremendo e avassalador, dependendo de cada pessoa, do tipo de crime, das suas circunstâncias.
Cada pessoa reage à experiência de ser vítima de crime de forma diferente: enquanto uns conseguem reagir e lidar com isso, prosseguindo a sua vida normal sem que a vitimação os afete; muitas pessoas sofrem um grande impacto negativo nas suas vidas. Não existe uma maneira “correta” ou “certa” de se reagir ao crime – os sentimentos e as suas emoções após o crime são reações normais a um acontecimento, esse sim, nada normal – ser vítima de um crime.
Se quiseres ajudar a APAV, podes fazê-lo de diversas formas.
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