Mealheiro #78: Mais Literacia Financeira É Algo Mau?
Não, mas o Bloco de Esquerda acha que sim
São 7 da tarde numa 6a feira, dia 29 de dezembro. A última 6a feira do ano, a 3 dias de 2024. E deparo-me com a seguinte publicação no Twitter:
Raramente uso o Twitter, mas vou encontrando algumas coisas aqui e ali interessantes. A razão pela qual acabei por ver isto foi porque alguém no Reddit chamou à atenção para um ponto muito específico nesta publicação:
Confesso que fui apanhado de surpresa. Eu acredito que a literacia financeira é efetivamente um motor capaz de melhorar a nossa condição. Contudo, aqui me encontro eu, a olhar para algo que contradiz aquilo em que eu acredito. E até tem uma fonte que, supostamente, demonstra exatamente isto! Fiquei sem palavras. Então decidi investigar um pouco.
Mas antes de irmos a essa parte, vamos perceber em primeiro lugar porque é que o Bloco de Esquerda está a fazer uma publicação tão incisiva sobre se devemos ter, ou não, mais literacia financeira.
Onde é que isto começou
No passado dia 21 foi levado ao Parlamento o Projeto de Resolução 952/VX/2, proposto pela Iniciativa Liberal. A proposta foi rejeitada com votos contra do Partido Socialista e do Bloco de Esquerda. Se quiseres ler a proposta completa, aqui tens.
As razões, por parte do Partido Socialista, para votar contra esta proposta foram as seguintes:
"O Deputado Pompeu Martins (PS) considerou que a educação financeira já faz parte do currículo das escolas, nomeadamente no que diz respeito aos dois ciclos do ensino básico e de forma opcional no ensino secundário, indicou os elementos disponíveis, a formação dada aos docentes, mencionou que Portugal está alinhado com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), os estudantes portugueses obtiveram o sexto lugar no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e salientou que muitos municípios e entidades intermunicipais têm programas no âmbito da literacia financeira."
Contudo, na proposta da Iniciativa Liberal nada disto foi contradito:
“Em 2018, foi avaliada a literacia financeira dos alunos de 15 anos no Programme for International Student Assessment (PISA)5 . Os resultados revelam que Portugal está na média da OCDE nos níveis de literacia financeira dos alunos, mas abaixo da média na percentagem de alunos que afirmam receber formação sobre este tema na escola”
A proposta apenas indica que “há margem para aumentar a literacia financeira se se garantir uma maior e mais prolongada exposição a temas de literacia financeira na escola”, e apresenta as seguintes propostas:
Atualizar o Referencial de Educação Financeira que data de 2013, tal como já estava previsto no Plano Nacional de Formação Financeira 2021-2025;
Considerar incluir aspetos elementares de literacia financeira no currículo escolar do ensino básico de forma que todos os alunos estejam expostos aos mesmos independentemente das escolhas vocacionais que façam no ensino secundário;
Incluir explicitamente a literacia financeira nas áreas de competências do Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória.
Certamente é um tema a considerar. Certamente há outros temas mais pertinentes a discutir na Assembleia da República neste momento. Certamente não é um problema tão grave como muitos outros. Mas é um assunto que eu, pessoalmente, considero importante e espanta-me a reação do Bloco de Esquerda - especialmente quando não intervieram durante a votação, mas decidiram levar o assunto para as redes sociais.
E é por isso mesmo que decidi vir escrever este artigo hoje, às 7 da tarde numa 6a feira, dia 29 de dezembro. A última 6a feira do ano, a 3 dias de 2024.
O estudo em questão
O estudo citado pelo Bloco de Esquerda é o seguinte: Is Financial Literacy Dangerous? Financial Literacy, Behavioral Factors, and Financial Choices of Households.
O resumo deste mesmo estudo, traduzido:
Usando dados de uma pesquisa japonesa original construída especificamente para 2018, estimamos os comportamentos e atitudes financeiras dos agregados familiares. Descobrimos que a literacia financeira desempenha um papel importante e consistente na tomada de decisões financeiras. No entanto, os comportamentos reais são contra-intuitivos: pessoas com altos níveis de literacia financeira tendem a assumir demasiados riscos, a endividar-se excessivamente e a manter atitudes financeiras ingénuas. Ou seja, a literacia financeira tende a levar as pessoas a tornarem-se ousadas e imprudentes em relação a alguns aspetos financeiros. Em contraste, pessoas financeiramente letradas são melhores no planeamento da reforma e são indiferentes ao jogo. Preferências como aversão ao risco e à perda, e fatores de desconto também desempenham um papel nas escolhas financeiras.
E a pergunta que me coloquei quando vi este estudo foi: quão confiável são estes resultados? Vamos ver.
Este estudo foi realizado no Japão, um país culturalmente conhecido pela sua aversão ao risco. Esta inclinação cultural para a cautela e estabilidade pode ter, indiretamente, adicionado um viés com uma ótica negativa aos resultados do estudo.
O inquérito sobre o qual este estudo assenta foi realizado através de uma plataforma online. A amostra utilizada no estudo pode não ser ideal devido a vários fatores:
Viés de seleção em inquéritos online: limitação dos participantes a membros da plataforma de inquéritos online e auto-seleção dos mesmos, potencialmente levando a uma representação desequilibrada de certos grupos demográficos;
Acesso à internet e representatividade: A exclusão potencial de populações sem acesso fácil à Internet, como idosos ou habitantes de áreas menos urbanizadas;
Generalização dos resultados: dificuldades em aplicar os resultados do estudo a diferentes contextos culturais e económicos devido às características específicas da amostra.
O mais interessante para mim, no meio disto tudo, não é nenhum dos pontos acima. Mas sim as perguntas do inquérito. Estas estão divididas por vários grupos, mas as que mais me interessam são as primeiras (Tabela 1, página 9). Vou só abordar o primeiro grupo de questões para dar um exemplo:
Investimento especulativo: estas perguntas são, na minha opinião, pouco representativas e demasiado genéricas para que se possa retirar algum tipo de conclusão. A primeira (SI1), toca no tema de FX trading, compra e venda de ações em margem, assim como venda e compra de futuros e opções. Algo altamente especulativo e de alto risco. A segunda (SI2), menciona experiência com compra e venda de criptomoedas - um espaço também bastante especulativo. Contudo, nenhum destes temas está correlacionado com a literacia financeira de uma pessoa - eu pessoalmente já vi pessoas em ambos os espetros a fazerem investimentos deste género.
E era aqui exatamente onde eu queria chegar. O estudo, embora tenha conclusões interessantes, limita-se a fazer uma análise superficial das mesmas tendo em conta definições vagas de produtos financeiros e o risco associado a estes produtos. Isto, por sua vez, pode ser facilmente amplificado fora de contexto e utilizado para defender uma ideia, à falta de melhor palavra, idiota.
Vou-te dar um exemplo: eu considero-me uma pessoa literada financeiramenta - e tu certamente concordas com isso, ou então não estarias subscrito a esta newsletter, mas estou a divagar.
Eu, mesmo sendo literado neste espaço, tenho todos os meus investimentos em ativos financeiros que são considerados de risco. Mas esses investimentos não são assim por eu desconhecer o risco. É exatamento o contrário. Eu tenho estes investimentos porque sei exatamente onde é que estou a colocar o meu dinheiro, sou capaz de fazer um análise de risco-benefício, e assim investir o meu dinheiro da forma que eu acho mais correta. E isto está longe de ser uma “decisão financeira irresponsável”.
A literacia financeira proporcionou-me maior segurança e domínio sobre o meu dinheiro. Equipou-me com o conhecimento necessário para fazer escolhas ponderadas e fundamentadas. Permitiu-me melhor perceber assuntos que antes eram verdadeiras incógnitas para mim. E se isto não é positivo, então não sei o que será.
Esta publicação do Bloco de Esquerda é de uma desonestidade intelectual bastante profunda. Ou então, simplesmente, nem se deram ao trabalho de verificar a fonte que citaram. Que venha o Diabo e escolha.
Já é agora dia 30 de dezembro, o último sábado do ano, a 2 dias de 2024, e estou a terminar de escrever este artigo. Antes de me despedir com um último pensamento, quero aproveitar para te desejar um Feliz Ano Novo. Que 2024 seja melhor que 2023.
Nota final
No fim do dia, mais literacia financeira aumentará sempre a capacidade de qualquer pessoa de gerir melhor os seus investimentos, de evitar vieses financeiros, de melhor usar o dinheiro a seu favor. Boa literacia financeira resulta numa boa relação com o dinheiro. E uma boa relação com o dinheiro não é o “sonho molhado” de um capitalista liberal, é algo que todos deveríamos almejar.
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Até uma próxima vez - Guilherme
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